[Rio de Janeiro – 12 de janeiro, 2011]
O pesquisador da Fiocruz Carlos Morel fala das Parcerias para Desenvolvimento de Produtos no contexto brasileiro
O médico e pesquisador Carlos Morel esteve envolvido na criação de diversas iniciativas para pesquisa e desenvolvimento em doenças negligenciadas, entre elas a DNDi, da qual participa como membro do Conselho Diretor representando a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Atual coordenador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz (CDTS), o pesquisador pernambucano participa ativamente dos Conselhos Diretores da “Medicines for Malaria Venture” (MMV) e da “Global Alliance for TB Drug Development” (TB Alliance) – organizações que, assim como a DNDi, consistem em Parcerias para Desenvolvimento de Produtos (PDPs).
Seguindo um modelo virtual de organização, tais iniciativas têm construído portfólios consistentes, providenciando financiamento, coordenação e supervisão técnica às atividades delegadas a parceiros dos mais variados setores. Sigla ainda pouco conhecida no Brasil, o modelo PDP foi um dos assuntos abordados por Carlos Morel, que assinala mudanças positivas no contexto brasileiro de saúde.
DNDi: No artigo A Global Health Innovation System (2006) o senhor aponta para uma tendência global de parcerias. Como o Brasil se encaixa neste cenário?
Carlos Morel: Esse movimento no Brasil é ainda muito recente. Até por conta da aprovação da nossa Lei de Inovação somente em 2005. Compare com os Estados Unidos: a lei semelhante à nossa Lei de Inovação, a chamada Bayh-Dole, é de 1980. Ficamos portanto 25 anos atrasados nessa área. Com problemas adicionais: a nossa lei de patentes (1996) foi feita no auge do período do neoliberalismo. Em função disso, temos uma lei de patentes mais rigorosa do que a de países como a Índia e a China que inclusive provocou uma crise muito séria nas empresas privadas brasileiras, em particular na indústria farmacêutica, que não tinha condições para, da noite para o dia, competir com a “Big Pharma”. O parque industrial brasileiro foi muito afetado por essa política. Isso é muito mais verdadeiro no setor farmacêutico do que em outros. Você tem uma Petrobras aí crescendo, tem uma Embraer crescendo e, no setor farmacêutico, só recentemente começam a despontar empresas mais robustas e inovadoras. Aquele meu artigo [A Global Health Innovation System, 2006] não focou no Brasil, abordou mais o contexto geral. No Brasil, a situação é um pouco diferente. Nós não temos aqui uma tradição de parcerias, porque, até 2005, eram praticamente proibidas colaboracões estreitas entre os setores público e privado.
DNDi: O senhor acha que essa nova tendência de parcerias facilita a entrada de novas PDPs?
CM: O projeto que estamos tocando aqui na Fiocruz [Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde/CDTS] é uma ideia que visa estimular a criação destas parcerias para o desenvolvimento de produtos de interesse sanitário, associando a Fiocruz, que é uma empresa pública, com parceiros industriais nacionais ou internacionais. Acho importante o fato do Temporão [José Gomes, ex-ministro da Saúde] e Carlos Gadelha [Vice-Presidência de Produção e Inovação em Saúde/FIOCRUZ] enfatizarem o papel do que denominam o Complexo Industrial da Saúde (CIS). Sim, porque a visão clássica é que saúde é uma área de despesa, enquanto essa nova visão resgata a saúde como área de investimentos. Não só de investimentos econômicos clássicos, mas como investimentos que buscam o desenvolvimento social. Tanto que o conceito mais moderno de doenças negligenciadas as considera como doenças promotoras de pobreza. Para mim, é uma virada muito importante no tema das doenças negligenciadas.
DNDi: Como se deu esta virada?
CM: A primeira vez que se falou em doenças negligenciadas foi na Fundação Rockefeller, na década de 1970, quando Kenneth Warren, então Diretor da área de Saúde daquela institução, lançou o programa The Great Neglected Diseases of Mankind. Naquele momento o conceito de doenças negligenciadas era baseado no fato que os investimentos em pesquisa nestas enfermidades eram mínimos em comparação com doenças como câncer. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) e a DNDi lançaram por volta do ano 2000 a noção que estas doenças eram negligenciadas pela indústria farmacêutica. Ou seja, como não há um mercado forte nesta área, a indústria as deixam de lado. A OMS (Organização Mundial da Saúde) se refere às doenças negligenciadas como sintomas da pobreza mas, hoje em dia, começamos a adotar o conceito que, mais que sintomas, elas são, sim, promotoras de pobreza. Ou seja, não se deve apenas esperar que desapareçam quando o desenvolvimento vier, você tem que enfrentá-las e combatê-las como parte das estratégias que buscam o desenvolvimento econômico e social. É uma inversão muito significativa da equação, são noções bem novas e ainda não totalmente integradas nas políticas públicas. E o Brasil, por conta desse atraso jurídico e legal, apenas agora começou a se mover nesta área.
DNDi: Que passos o Brasil deve tomar para incentivar a entrada das PDPs?
CM: A DNDi foi a que mais avançou no Brasil, inclusive do ponto de vista formal, pois vocês chegaram até mesmo a estabelecer uma presença local, abrindo um ativo escritório no Rio de Janeiro. Outras PDPs ainda resistem a operar em nosso país, em particular devido aos obstáculos burocráticos que precisam enfrentar para poderem realizar ensaios clínicos de novos medicamentos. São raras as que persistem, pois são muitas as barreiras a vencer. Por exemplo: para um medicamento que será testado entrar no país, a empresa hoje em dia tem que pagar imposto como se fosse um produto já industrializado. Mesmo sendo para fins de pesquisa, ele já é taxado como se fosse um produto pronto e acabado, o que definitivamente não é. Outra dificuldade: a morosidade na aprovação de protocolos de pesquisa clínica. Enquanto em outros países isso pode ser conseguido em alguns meses, no Brasil isso pode levar mais de um ano. Empresas que que já investiram milhões de dólares nas fases de pesquisa e desenvolvimento e precisam realizar estudos de fase II, fase III, precisam correr contra o tempo, pois estes são estudos complexos e demorados. Se além da demora natural que os testes clínicos exigem uma empresa ainda tiver que esperar um ano ou mais para conseguir a aprovação inicial para iniciar os trabalhos, ela termina procurando outro local em que esses processos são tratados com mais agilidade. Na indústria de fármacos, há uma necessidade de aperfeiçoar os procedimentos e processos nas instituições envolvidas, bem como estimular e facilitar a interação entre as mesmas: Universidades, institutos de pesquisa e desenvolvimento, hospitais e redes onde ocorre a pesquisa clínica, ANVISA [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], CONEP [Comissão Nacional de Ética em Pesquisa], INPI [Instituto Nacional da Propriedade Industrial]. São instituições críticas e fundamentais para que nosso país possa desenvolver um verdadeiro sistema nacional de inovação em saúde, componente fundamental do Complexo Industrial da Saúde.